quarta-feira, 3 de abril de 2024

A CASA DAS MIL MEMÓRIAS


Em algum dia perdido entre as eras, o mundo à primeira vista não parecia muito diferente do nosso, mas sob a superfície, realidades mais escuras e complexas se entrelaçavam, invisíveis aos olhos desatentos. Foi neste ano que comecei a compartilhar minha história com Ivan, não apenas um psicanalista freudiano, mas um amigo, desde o mestrado e guardião dos segredos mais profundos da minha alma.
O consultório de Ivan, um refúgio de introspecção, parecia um portal para outra época, com seu divã clássico e paredes revestidas de livros. Mas, apesar do conforto aparente, algo mais misterioso pulsava ali, um sussurro de algo antigo e oculto, talvez até mesmo relacionado ao enigmático mundo de Kult, que sou mestre, onde eu Ivan, Raquel e outros, muitas vezes exploramos, onde as realidades são camadas sobrepostas, cada uma mais estranha e complexa que a anterior.

- Ivan, já sentiu desejo, medo e temor ao mesmo tempo por algo?


A conversa que se seguiu revelou experiências que eu tinha dificuldade em compreender, muito menos explicar. Falamos de sonhos e delírios que me transportavam para lugares onde a realidade se desdobrava em algo completamente diferente. Um desses episódios me levou a um banheiro estranho e decrépito, um lugar que parecia existir numa realidade paralela, um eco distorcido do meu próprio mundo. As paredes ensanguentadas e o chão coberto de ferrugem falavam de horrores não contados, uma visão que, estranhamente, me enchia tanto de medo quanto de uma saudade inexplicável.
Mais tarde, em um sonho, minha casa se transformava num ponto de encontro para todas as almas da Terra, vivas e mortas. Um lugar familiar, mas estranhamente alterado, com cômodos que apareciam e desapareciam. Era uma morada de solidão imensa, onde eu podia apenas encontrar companhia na presença dos outros enquanto dormia. Essa experiência revelou a profunda conexão entre os mundos visível e invisível, entre a realidade e o que jaz além.

- Mas quando acordou era o real?

- Sim, pois senão a Laura Sofia seria só um sonho...

A conversa tomou um tom ainda mais profundo quando mencionei minha filha, o amor e a luz que surgiram da escuridão desses sonhos e delírios. E, ainda assim, a saudade daquele poder e solidão persistia, um desejo de explorar essas realidades ocultas, apesar dos riscos.
Quando sugeri reduzir minha medicação para revisitar aqueles lugares, Ivan me lembrou da importância do equilíbrio e da saúde. No entanto, o desejo de narrar essas experiências em um conto, "A Casa das Mil Memórias", surgiu como uma forma de confrontar e talvez entender melhor essas viagens ao desconhecido.
Ao tecer essa narrativa, percebi que estava explorando não apenas as camadas da minha própria psique, mas também tocando nos mistérios do universo de Kult, onde a realidade é uma prisão para a mente, e a verdadeira liberdade reside na descoberta do que está oculto. O medo do meu pai, a transformação da minha casa, a dualidade entre poder e solidão; tudo isso refletia a eterna luta entre o conhecido e o desconhecido, entre a luz e a escuridão, entre o divino e o mundano.
A decisão de não ajustar a medicação, apesar da saudade daquele lugar de poder e mistério, foi um momento de clareza na névoa de incertezas. Eu sabia que a busca pelo entendimento dessas visões não deveria comprometer minha conexão com a realidade compartilhada, especialmente não com a Laura Sofia, um ser de pura luz nascido da escuridão da minha jornada. 

- Refletir sobre essas experiências através da escrita, "A Casa das Mil Memórias", poderia ser uma chave para compreender as camadas mais profundas de sua existência. Cada memória, cada visão, cada momento de solidão ou poder, pode ser uma porta para entender os mistérios ocultos que Kult nos ensina a questionar. A realidade é uma prisão, mas as chaves para as portas estão escondidas nas profundezas da nossa mente.

A inspiração para o conto fluía agora não apenas das minhas próprias experiências, mas também da lore de Kult, onde a ilusão da realidade é constantemente desafiada, e os deuses e demônios lutam em segredo pela essência da humanidade. A casa, com seus cômodos que aparecem e desaparecem, servia como uma metáfora para a cidade eterna de Kult, Metrópolis, um labirinto de realidades onde as almas se perdem e encontram.
Nessa jornada literária, explorei não apenas o medo e a solidão, mas também o conceito de poder divino e mortalidade, refletido na complexa relação com meu pai, que simbolizava ao mesmo tempo segurança e o temor supremo. O desejo de aproximação e afastamento de Deus, representado no sonho como uma relação direta com o divino, tocava no coração da filosofia de Kult: a busca pela verdadeira liberdade além das amarras da realidade ilusória.

- Escrevendo, comecei a ver as conexões, não apenas entre as minhas experiências, mas também com as histórias que Kult conta. Histórias de seres presos entre mundos, de realidades que se sobrepõem e conflitam, de uma busca contínua pela verdade escondida sob camadas de ilusão.

O processo de escrever "A Casa das Mil Memórias" tornou-se, então, uma meditação sobre a natureza da realidade, uma exploração dos limites entre o eu consciente e o inconsciente, entre o divino e o profano. Cada palavra, cada frase, cada página era uma tentativa de mapear o labirinto interior e exterior, de encontrar ordem no caos, de buscar luz na escuridão.

- Ao compartilhar essa jornada, você não apenas ilumina os corredores escuros da sua própria mente, mas também oferece uma tocha para outros que andam por seus próprios labirintos. "A Casa das Mil Memórias" pode ser mais do que um conto; pode ser um guia, um consolo, um espelho, refletindo as lutas e as esperanças de todos que se atrevem a questionar a realidade e buscar algo mais, disse Ivan.

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À medida que "A Casa das Mil Memórias" tomava forma, cada capítulo se tornava um rito de passagem, uma iniciação aos mistérios que tanto me atormentavam quanto me fascinavam. A escrita era agora uma ponte entre mundos, um meio de navegar pelas águas turbulentas do inconsciente, onde as correntezas ocultas de Kult se mesclavam com as minhas próprias visões e temores. O que será narrado aqui é verdadeiro, mas também poético. Um misto de sonhos e metáforas do real. Mais do que um diário, crônico e realista, mas uma anatomia do meu inconsciente.
O temor reverencial que sentia por meu pai e a complexa dinâmica de poder que compartilhávamos refletiam a dualidade de Deus em Kult, uma entidade ao mesmo tempo distante e íntima, fonte de ordem e caos. A minha casa, com sua arquitetura mutável, tornou-se um símbolo para o universo: um lugar de infinitas possibilidades e também de prisões inescapáveis, um labirinto que cada um de nós habita, buscando saídas ou, talvez, compreendendo que algumas portas levam a realidades mais profundas e perturbadoras.
Através da escrita, confrontei o medo de perder-me novamente nesses surtos de realidade alterada, de desejar o poder que eles traziam, junto com a solidão. Era uma caminhada na corda bamba entre a sanidade e a loucura, entre permanecer ancorado no amor e na realidade compartilhada com a Luciana e a Laura Sofia, e o desejo de explorar as profundezas escuras e desconhecidas da minha alma.

- Ivan, temo que ao explorar essas memórias, essas realidades alternativas, eu possa de alguma forma convidar novamente o caos para minha vida. Como posso garantir que permaneço seguro, que não me perco novamente nessas viagens?

- A escrita, como você está descobrindo, é tanto uma exploração quanto uma âncora. Ela permite que você visite esses lugares, esses estados de ser, com um grau de distância e controle. Ao narrar sua jornada, você não só processa e entende suas experiências, mas também cria um espaço seguro para explorar sem se perder. Lembre-se, a consciência é sua bússola, e o amor pela sua família, o seu farol. "A Casa das Mil Memórias" não é apenas uma exploração das sombras, mas também um testemunho da luz que pode emergir da escuridão.

A jornada para completar o conto, que mais tarde se tornaria este livro, se tornou uma espécie de terapia, uma maneira de recontextualizar os surtos e as visões, integrando-os à minha narrativa maior de vida, sem permitir que definissem ou confinassem minha existência. Ao mergulhar no oculto, no mistério e na complexidade de Kult, eu encontrava não só um espelho para minhas próprias lutas internas, mas também uma chave para compreendê-las e aceitá-las.
"A Casa das Mil Memórias" prometia ser mais do que uma obra de ficção; era um mapa de minha própria psique, um guia para navegar os mares revoltos entre realidades, um testemunho da capacidade humana, e porque não a vós de meu ego, lutando para encontrar beleza e significado mesmo nas profundezas da desolação. E talvez, mais importante, era uma mensagem de esperança para outros que caminhavam por seus próprios labirintos escuros, mostrando que mesmo nos cantos mais sombrios do espírito humano, a luz pode encontrar um caminho.

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Inspirado pelas conversas com Ivan e pela profunda imersão em minhas próprias experiências e no enigmático mundo de Kult, decidi que "A Casa das Mil Memórias" não se limitaria a um único conto. Ivan, sempre um farol de sabedoria e compreensão, sugeriu uma abordagem que se estenderia além da minha história inicial. "Por que se limitar a uma única memória, quando cada uma delas carrega em si um universo de significados à espera de ser explorado?", ele ponderou.
Assim nasceu a ideia de uma coletânea de contos, cada um narrando uma memória distinta, um fragmento de realidade vivida ou imaginada, cada uma refletindo um aspecto da complexa e idiossincrática arquitetura da experiência humana. Esse projeto não se restringiria a uma forma única de compartilhamento; poderia se manifestar como um livro, um blog, ou até mesmo um fórum, onde cada conto serviria como ponto de partida para discussões mais profundas, explorando as diversas facetas da mente e da realidade.
Cada memória, cada história, seria uma jornada em si mesma, uma tentativa de compreender de modo verdadeiro e significativo as nuances da existência. Mais do que isso, seria uma forma de conexão, um convite para os leitores explorarem suas próprias memórias e realidades, talvez até encontrar eco em suas próprias experiências.
"A Casa das Mil Memórias" se transformaria, assim, em um espaço de encontro para almas buscadoras, um lugar onde as barreiras entre autor e leitor, entre realidade e ficção, se desfazem na partilha de histórias. Cada conto, uma porta aberta para o desconhecido; cada página, um passo em direção à compreensão do que nos torna humanos.
Este projeto, sugerido por Ivan e abraçado por mim, promete ser mais do que uma simples coleção de narrativas; seria um diálogo contínuo sobre a natureza da realidade, da mente e do espírito, um mergulho nos mistérios ocultos que residem nas profundezas de cada um de nós, explorando a linha tênue entre a luz e a escuridão que compõe o tecido do ser.

***

MEMÓRIA 0 - NO DIVÃ DE IVAN

"Já sentiu desejo, medo e temor ao mesmo tempo por algo?" A pergunta, carregada de introspecção, quebra o silêncio do consultório.
"Sim, esses sentimentos, embora contraditórios, frequentemente se entrelaçam nas profundezas do nosso ser. O que te leva a perguntar isso?" A resposta vem tranquila, refletindo uma compreensão profunda dos labirintos da mente.
"É sobre um sonho... ou talvez tenha sido um delírio. Estou tentando entender. Sinto que essas emoções estavam me guiando para um lugar desconhecido dentro de mim, um lugar que estou ansioso e receoso de explorar." A voz carrega uma mistura de hesitação e vontade de desvendar o desconhecido.
"Essa combinação de sentimentos indica uma área significativa do seu inconsciente tentando se comunicar. Vamos explorar isso juntos. Conte-me mais sobre esse sonho ou delírio." Encorajamento mistura-se com a promessa de uma jornada compartilhada nas profundezas da psique.
"Eu estava em outro lugar durante um surto, mas parecia real. As sensações eram tão vívidas... e havia esse banheiro estranho, com paredes sujas de sangue e ferrugem. Mas o mais intrigante era a sensação de poder e solidão, uma saudade desse lugar de mistério e escuridão." A confissão vem carregada de um anseio por respostas, por compreender o insondável.
"Refletir sobre essas experiências através da escrita pode ser uma chave para entender essas camadas mais profundas. Cada memória, cada visão, carrega em si um universo de significados à espera de ser explorado." As palavras, sábias e ponderadas, sugerem um caminho a seguir, um meio de navegar pelo caos interior.
"E se essa exploração me levar de volta ao caos? Como posso garantir que permaneço ancorado na realidade?" A preocupação é palpável, a luta interna entre a curiosidade e o medo de se perder novamente nas profundezas do ser.
"A escrita permite que você visite esses estados de ser com um grau de distância e controle. É tanto uma exploração quanto uma âncora, um espaço seguro para entender sem se perder." A resposta oferece conforto, uma promessa de segurança na jornada pelo desconhecido.
"Então, 'A Casa das Mil Memórias' não será apenas minha história, mas um convite para outros explorarem suas próprias realidades, um espaço onde as barreiras entre autor e leitor se desfazem na partilha de histórias." A ideia ganha forma, uma visão de conexão e descoberta através da partilha de experiências.
"Exatamente. Ao compartilhar sua jornada, você ilumina os corredores escuros da sua própria mente e oferece uma tocha para aqueles que caminham por seus próprios labirintos. É mais do que um conto; é um guia, um consolo, um espelho para as lutas e esperanças de todos nós." 

Essas palavras encerram nosso diálogo e a primeira memória da casa, com uma nota de esperança, um reconhecimento da universalidade da busca humana por significado e conexão.

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