Jürgen Moltmann
(Professor de Teologia Sistemática na Eberhard Karls Universität Tübingen, Alemanha)
Traduzido por José Luiz M. Carvalho
Os pontos fortes da Teologia Reformada são, ao mesmo tempo, suas fraquezas. Para se tornar apto para o século 21 no âmbito comum da teologia ecumênica e no âmbito universal da humanidade e do mundo, parece necessário reformular a força da Tradição Reformada. Isto não significa adaptar a nossa tradição em virtude de outras ou integrar nossa originalidade naquilo que é comum a todos, mas encontrar o nosso próprio perfil nas novas realidades do cristianismo e da humanidade. “Se dois estão dizendo a mesma coisa, um deles é supérfluo”, diz um velho provérbio russo. Não é a intenção da comunidade ecumênica e do diálogo inter-religioso tornar supérfluos os outros. A diferença é sempre interessante.
Desde João Calvino e Teodoro Beza, o fundador da ortodoxia reformada no século XVII, o “calvinismo” ficou famoso, por um lado, e notoriamente acusado, por outro lado, por causa da doutrina da dupla predestinação: a humanidade está dividida em eleitos aqui e rejeitados acolá. Deus é totalmente livre para escolher quem ele quer e rejeitar a quem não quer. Ambos servem a glorificação de Sua Majestade, e quem pode argumentar com a sublimidade do Deus infinito?
A crença na eleição divina foi e continua sendo, de fato, a força da fé reformada. Ela deu aos crentes uma certeza invencível em sua fé para se saber que não apenas como um ser amado por Deus, e não somente justificado pela graça de Cristo e santificado pela inspiração do Espírito Santo, mas também eleito pela vontade de Deus. A partir desta crença na eleição divina segue-se a confiança na perseverança divina através dos altos e baixos da vida pessoal até a redenção final: não vou cair e nada nem ninguém pode arrancar-me das mãos de Deus. Deus é fiel à sua eleição, Cristo orou por mim para “que minha fé não desfaleça” (Lucas 22:32), a semente divina do Espírito Santo em meu coração nunca irá morrer. Essa crença era o poder de resistência em perseguições , seja para os huguenotes na França ou para os cristãos reformados nos Países Baixos. Marie Durand ficou presa no Tour de la Constança, em Aigues-Mortes no sul da França, durante trinta e oito anos, sustentando e exortando seus companheiros no cativeiro por causa de sua fé , e ali ela fez sua inscrição na famosa pedra.
Mas será que essa força da crença em uma eleição divina significa que o resto da humanidade está perdido e condenado à eternidade como a multidão de corrupção, a massa perditionis como Agostinho chamou? Devemos dizer ao resto do mundo: “Segundo a Bíblia e a nossa crença aqueles que não crêem em Cristo perecerão”, como o presidente da Aliança Mundial das Igrejas Reformadas Choan-Seng Sonq, de Taiwan, afirmou? Há sempre duas explicações diferentes do simples fato de que um e o mesmo Evangelho provoca a crença em uns e descrença em outros. E isto é devido à vontade de Deus ou dos seres humanos. Porque os crentes confessam que devem a sua fé à graça de Deus, eles vêem com descrença a desgraça de Deus. Uma vez que eles se sentem em sua fé “eleitos”, eles podem ver na incredulidade apenas “rejeitou” as pessoas. A outra explicação refere-se à livre escolha da vontade humana: Aqueles que decidiram por Cristo vêem o céu como o seu futuro eterno, e aqueles que se decidem contra Cristo, eles vêem apenas o inferno como o seu futuro ou, mais recentemente, um “não-ser total”. O resultado dos crentes em vista dos incrédulos é o mesmo, seja em Agostinho e Calvino com sua doutrina da dupla predestinação, ou em Pelágio e Erasmo com sua doutrina do duplo efeito da livre escolha humana.
A fé não é apenas a confiança humana em Deus, mas também, e em primeiro lugar, a fidelidade de Deus. É nesse sentido que eu faço apelo a cada crente como uma pessoa em quem Deus confia, em quem Deus está presente e por quem Deus está esperando. Deus acredita em cada pessoa humana. Isso pode ser chamado de “fé objetiva” (Christoph Blumhardt).
Foi Karl Barth, que, após Blumhardt, nos deu uma engenhosa reformulação cristológica da doutrina Reformada da dupla predestinação (Kirchelische Dogmatik II/2). A seqüência de seu argumento é esta:
1. Antes de Deus eleger ou rejeitar alguém, Ele determina-se a ser o Deus do povo: “Eu serei o seu Deus, e vós sereis o meu povo”, é a fórmula do pacto de Israel. Isto pode ser chamado de auto-eleição de Deus.
2. Na paixão e crucificação de Cristo, Deus colocou sua justa condenação do pecado, o mal e a morte em seu próprio Filho. Entre Getsêmani e Gólgota, Jesus sofreu o inferno e a morte eterna por todos nós quando ele clamou: “Deus meu, por que me abandonaste?”
3. Com a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, o inferno e a morte eterna foram, portanto, superadas. A eleição da graça é revelada: “Ó inferno, onde está a tua vitória!” (1 Coríntios. 15:55). A Graça que sai do Cristo ressuscitado é pura graça e, como tal, também incondicional e universal, abrangente e não excluindo ninguém. Este é o conteúdo do Evangelho e não há terror na doutrina da dupla predestinação, ademais.
“A doutrina da eleição é a suma do Evangelho, pois de todas as palavras que podem ser ditas ou ouvidas, o melhor é: que Deus elege o homem, que Deus é para o homem também aquele que ama em liberdade”, disse Karl Barth no § 32 da sua Kirchelische Dogmatik. Por que isso acontece? Porque “Deus tomou sobre si a condenação dos pecadores, com todas as conseqüências, e elegeu o homem para participar na sua glória eterna (§ 33)”. Barth, então, ensina a “dupla predestinação”? Sim! Mas em uma nova forma dialética: Deus tomou sobre si a condenação, a fim de abraçar a todos na sua eleição da graça. Esta é a nova forma dialética da antiga doutrina de “dupla predestinação”.
Evidentemente, esta nova formulação não é uma explicação do fato de que alguns acreditam no Evangelho e outros não. Mas será que realmente precisamos de uma explicação teológica deste fato ou a melhor forma de responder ao fato de que há incrédulos é com um novo e melhor testemunho do Evangelho de que Deus os ama com graça e pagou todos os seus pecados e os sofrimentos por eles? Outra questão é se o universalismo é o resultado desta reformulação. A resposta é “Não”! Porque nós somos testemunhas do Evangelho, não os juízes no julgamento final de Deus. Se Deus, no final, abraçar todos com sua graça transformadora, o fará por Seu amor, a nossa parte é o testemunho do Evangelho a todos. Mas se alguém morre na incredulidade, está automaticamente excluído ou há esperança também para ele? A resposta é: o nosso meio de pregação e oração chegou ao fim com a morte, mas não o poder de Cristo, porque Ele ressuscitou e tem as suas possibilidades com os mortos, pregando o Evangelho até no Hades. Não nos há, portanto, nenhum motivo e nenhum direito para condenar e excluir ninguém, vivo ou morto. Nós não somos os juízes da fé, mas os servos felizes.
Publicado no Bulletin do Institute for Reformed Theology, Primavera/Verão 2001, vol. 2, # 2.
Nenhum comentário:
Postar um comentário