Muitas vezes ouve-se escritores dizendo que sua arte é basicamente a mesma dos tempos mais primitivos, quando as pessoas se juntavam em torno de fogueiras para ouvir histórias que tanto entretinham quanto explicavam, dando ordem e razão a um universo que parecia fortuito e incompreensível.
Algumas dessas histórias foram consagradas ao serem recontadas por gerações e gerações, e, por um tempo, eram até mesmo reconhecidas como verdades sagradas. Os séculos se passaram e, enquanto fatos e teorias cresceram ao seu redor, as histórias passaram de dogma a mito; sua verdade não era mais sua maior virtude, mas elas ainda eram respeitadas pelo seu poder de racionalizar a vida, mesmo que apenas por um instante.
E mesmo assim ainda não sabemos quando o contar histórias terminou e as mitologias começaram.
Estudiosos concordam que Homero, se é que essa pessoa realmente existiu, não foi o autor dos mitos gregos a ele atribuídos. O poeta cego da Antiguidade pode ter contado as histórias que chegaram até ele e, ao fazer isso, ajudou a moldar a forma final como elas vieram a ser codificadas.
Mas quando as histórias começaram — naquele dia há muito perdido pela memória e pelos registros — será que o primeiro dos poetas naquela longa fila achou que estava contando uma história, ou que estava explicando um fato, ou as duas coisas? Sentira ele a revelação divina ou a inspiração divina, e será que sabia a diferença entre as duas?
O poder de um mito é, em parte, o poder deste mistério.
Na Antiguidade, o conhecimento era frágil. Os fatos, quando conhecidos, poderiam ser transmitidos para os outros apenas diretamente: recontados, cara a cara, ou escritos, laboriosamente registrados para criar um único documento que poderia perder-se ou desfazer-se facilmente.
Diz-se que o incêndio na Grande Biblioteca de Alexandria destruiu 400 mil pergaminhos, sem sabermos quantos destes continham informações únicas.
A sobrevivência dos mitos é um indicativo de seu poder, de sua ressonância com nossa necessidade humana básica de entender nosso mundo.
Mas os mistérios em torno de seu momento de criação acrescentam-lhes poder — ao não termos a certeza de sua autoria ou motivação, a aura da possibilidade brilha mais forte. A história do nascimento das histórias torna-se parte do próprio mito.
Quando começa a história? Quando começa o mito?
A sabedoria diz aos contadores para começar a história no último momento possível, talvez para preservar o mistério do que aconteceu antes, talvez para maximizar a força acumulada que se alcança quando os eventos começam daquele ponto.
Estar presente na criação — e, ainda assim, não estar.
Então, mesmo nos tempos modernos, o conhecimento é inerentemente incompleto.
Mesmo com acesso irrestrito a incontáveis gigabytes de informação disponíveis ao toque de um dedo no teclado e fatos ou erros factuais podem persistir muito além da sua vida natural, protegidos em memória digital, que não foram revisadas ou contextualizadas.
Nosso problema, hoje, não é a escassez de informação ou sua fragilidade, mas o desafio arrebatador de selecionar para entender e encontrar a verdade relevante dos dados, mesmo em nossas próprias vidas, conseguimos fazer essa filtragem. Por isso podemos dizer que nosso conhecimento permanece ancorada a nossa vivência dos fatos. Não há um acesso direto a uma perspectiva onisciente e que possa dar um significado completo.
Augúrios auspiciosos precedem mitos. A Grande Tempestade de 1987 atingiu a Inglaterra em outubro, derrubando 15 milhões de árvores. Enquanto ela assolava o país (acompanhada de uma breve controvérsia quanto a seus ventos de 196 quilômetros por hora chegarem ou não ao nível de serem classificados como furacão), um criador de mitos pode estar no escuro em meio a devaneios e sonhos fabricando mundos e multiversos fabulosos e fantásticos.
Antes que a pena descanse, será que mais 15 milhões de árvores serão derrubadas para fazer o papel que comporão um livro?
Chega de tergiversar — vamos direto ao ponto. Onde começa a mitologia?
Em certo sentido, nunca vamos saber. A mitologia exerce seu poder ao tornar as forças impessoais do universo explicáveis, ou pelo menos mais toleráveis, para nós.
Mesmo que o contar histórias não termine quando a mitologia começa...
...pois não há uma brecha intransponível entre os dois. Ainda nos deliciamos com as antigas histórias, cujo poder de explicar o universo diminuiu sob a investida implacável da ciência.
Sentimos seu antigo poder ecoar profundamente em nós, enquanto nossa consciência fica repetindo “Essa é apenas uma história”. Relegamos tais histórias a sua origem — a mitologia grega, a mitologia hindu, onde quer que tenham sido contadas — e dizemos a nós mesmos que podemos aprender sobre aqueles tempos e aquelas pessoas ao ouvir esses contos mais uma vez.
Mas ainda são contadas histórias para nos ajudar a lidar com o inimaginável; ainda são contadas histórias para nos ajudar a entender o mundo. Usando o mesmo poder que o contador diante do fogo conjurava há tanto tempo — o poder que um escritor maneja tão bem com sua pena.
- Paul Levitz 2006
Nenhum comentário:
Postar um comentário